quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Nós somos feitos uns dos outros

Precisamos celebrar a diversidade e garantir que a intolerância não seja opção. Crescemos no encontro com a diferença em nossos semelhantes

A brasileira estuprada por vários homens e exposta na internet. O americano que matou dezenas em uma festa gay. O belga que comandou uma série de ataques terroristas em Paris. Não precisamos sair de casa para perceber que ódio e discriminação são desafios de primeira ordem para esta humanidade que se diz civilizada. A intolerância nos aproxima da barbárie. 

Por que um humano desrespeita a dignidade do outro? Coordenador da pós-graduação em Filosofia da Unisinos, o argentino Alfredo Culleton avalia que a intolerância é a resposta a um outro percebido como ameaça:

-- Em uma sociedade em que as pessoas se sentem cada vez mais assustadas, a intolerância só pode crescer. Não tem como combater a intolerância sem desativar os mecanismos de medo. E os mecanismos de medo são desativados na medida em que você se aproxima e conhece o diferente.
Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, diversidade é a clara ideia de que nenhuma cultura tem a resposta a todas as inquietações e aspirações humanas. "A diversidade é o reconhecimento da incompletude recíproca", disse durante passagem pelo Brasil em 2010. O catedrático da Universidade de Coimbra observou que tolerância, por si só, não basta. "Na Europa, há políticas de diversidade conservadoras, o multiculturalismo reacionário: ¿até respeito que os imigrantes existam, desde que não me incomodem¿".

Seria o caso de recuperarmos a alteridade, a capacidade de compreender que só constituímos nossa própria identidade na medida em que reconhecemos a identidade do outro: construímo-nos na diferença.

Intestinos expostos em rede

O pesquisador em Comunicação Ronaldo César Henn afirma que a força do compartilhamento nas redes sociais dá visibilidade a grupos minoritários historicamente marginalizados, o que gera uma guerra de sentidos que revela intolerâncias latentes.

-- Existem ódios de gênero, étnicos e de classe que vieram à tona com muita intensidade nos últimos anos. A rede fortalece laços de tudo que é tipo, e acho positivo, porque mostra a face do país. Não podemos acreditar que, conforme segmentos vulneráveis ganham visibilidade, serão prontamente acolhidos -- pondera Henn, professor da pós-graduação em Comunicação da Unisinos.

O que se vê são ofensas como as verificadas em estádios de futebol. Protegidas pela multidão, as pessoas manifestam os preconceitos mais vis. 

-- As pessoas não se dão conta de que coisas que têm um peso ditas numa mesa de bar, em rede, têm outra potência. Comentários racistas e homofóbicos passam muito por uma falta de senso da visibilidade que essas manifestações podem ter -- avalia o professor, que desenvolve e orienta pesquisas sobre o tema.

Por outro lado, Henn vê como positivo o fato de as redes sociais facilitarem a articulação dos movimentos sociais e acolherem indivíduos pertencentes a minorias, que se veem fortalecidos.

-- À medida que obtêm espaço de visibilidade, segmentos vulneráveis podem inclusive reivindicar: "Quero falar por mim mesmo, você não precisa falar por mim".

Ódio disfarçado de liberdade

Algumas intolerâncias são oficializadas. Outras são encorajadas em certos contextos. Sob argumentos como liberdade de expressão e liberdade religiosa, grupos alimentam a discriminação contra minorias como se a busca de direitos por uns implicasse a subtração de direitos dos outros. Para o professor de Direito Guilherme de Azevedo, é necessário responsabilizar instituições cujos discursos dão suporte a atitudes violentas. 

-- Você pode até seguir uma fé ou doutrina religiosa que não acolhe a homossexualidade. Mas nenhum líder religioso, sob o pretexto de exercer o direito à liberdade de crença, está autorizado a dizer que o homossexual é uma pessoa de segundo nível, nojenta, corrupta. Outro exemplo: terreiros de candomblé e de umbanda são atacados por grupos religiosos que manifestam clara intolerância com a cultura de matriz africana. Os líderes desses grupos são responsáveis diretos quando estimulam esse preconceito -- afirma.

A piada racista ou machista está na ponta de um gradiente cujo extremo oposto é território da violência física. Gente é morta por conta da mesma lógica que inferioriza a mulher, o negro, o transgênero, o homossexual e o refugiado. 

-- Nem todo intolerante vai praticar um ato violento, mas por trás de toda violência há intolerância na origem -- justifica o professor.

Para o filósofo Alfredo Culleton, há que se criar destinos seguros para o ódio, um sentimento "necessário à espécie":

-- Ninguém vai deixar de ter ódio porque decidimos que não deve. Há uma cultura do ódio porque há uma falta de espaço adequado para o ódio. Quanto mais arte, menos ódio. Quanto mais esporte, menos ódio.

Marcadores da diferença

Se tolerância e alteridade são conceitos, intolerância é uma realidade cotidiana cujo peso recai desproporcionalmente sobre os ombros de alguns. O guia da ONU para o combate ao racismo e pela proteção das minorias lamenta que, "embora os princípios da igualdade e da não discriminação estejam firmemente enraizados nas normas internacionais, discriminação racial e falta de proteção adequada das minorias continuam a ser desafios generalizados em todas as regiões do mundo". Indivíduos pertencentes a minorias têm mais dificuldade em acessar direitos básicos, como saúde, educação e emprego.

As ciências sociais chamam de marcadores sociais da diferença um conjunto de fatores como classe social, gênero, raça, sexualidade, idade e etnia, que, no conjunto, ajudam a entender que vida uma pessoa leva -- e a possibilidade de essa vida ser interrompida. 

-- A vida de uma mulher, negra, pobre e homossexual será possivelmente um repertório de tragédias. Um homem, branco, proprietário e heterossexual terá muito menos chances de ter seus direitos básicos vulnerados -- compara a coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos, Fernanda Frizzo Bragato.

A psicóloga Fernanda Hampe explica que, de forma interseccional, "os marcadores produzem maior ou menor vulnerabilidade".

-- Se além de negra, pobre e homossexual, a mulher for trans, poderá estar em uma situação de ainda mais vulnerabilidade -- pondera Fernanda, que é professora da graduação em Psicologia e integra o Coletivo Caleidoscópio Unisinos, iniciativa que busca debater e combater o sexismo, o machismo, a homofobia e a transfobia. Fernanda avalia que crimes contra minorias são invisibilizados pela ausência de legislação específica.

Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Unisinos, a professora Adevanir Pinheiro aponta que mesmo a xenofobia é agravada quando acompanhada do traço racial.

-- É mais tolerado aquele refugiado branco. Basta ver como são tratados os descendentes de negros escravos em comparação aos imigrantes europeus -- diz Adevanir.

A herança roubada dos afrodescendentes

No Brasil, mais da metade dos homicídios de mulheres é cometida por familiares, e um terço deles, por parceiros e ex-parceiros. O marcador racial volta a dar as caras: enquanto o país reduziu em 9,8% os homicídios a mulheres brancas entre 2003 e 2013, cresceram 54,2% os assassinatos de mulheres negras, que também são as principais vítimas de estupro. A Lei Maria da Penha completou dez anos em agosto. A legislação deu robustez ao combate à violência contra a mulher, mas a fiscalização das medidas protetivas -- como a proibição ao agressor de aproximar-se da vítima -- ainda é falha. 

Gênero e raça tornam-se marcadores especialmente relevantes, porque identificam "minorias majoritárias". Mulheres são mais da metade da população brasileira, que também é 53,6% composta por negros e pardos. A ONU nos avisa, em seus objetivos para 2030, que a igualdade de gênero é prioridade para o desenvolvimento sustentável do planeta -- o Brasil está na 85ª posição neste quesito, segundo o Fórum Econômico. Neste ano, completam-se 15 anos da Convenção de Durban, na África do Sul, quando países assinaram o mais abrangente programa de combate ao racismo da história, e um dos signatários é este Brasil em que 77% dos jovens assassinados são negros. 

Para Guilherme de Azevedo, retirar os afrodescendentes da condição de vulnerabilidade é uma tarefa que o país vem enfrentando timidamente.

-- Foram mais de cem anos em que praticamente não houve legislação que tratasse do problema da desigualdade racial, sendo que nenhuma marca é mais significativa para explicar o Brasil: tudo que foi feito de infraestrutura na construção do país, foi com mão de obra negra e escrava até o século 19 -- relata.

O professor faz eco ao que dizem a ONU e boa parte dos estudiosos sobre a necessidade de ações afirmativas que compensem, ao menos em parte, o prejuízo que os afrodescendentes carregam pela imagem de figura inferior atribuída a seus antepassados pelo estado brasileiro e em outros países.

-- Há quem conteste o racismo no Brasil por não ter havido racismo oficial, como houve nos EUA e na África do Sul. No século 20, não era preciso uma legislação para pagar menos pela mão de obra de um negro. Já se sabia que ele teria dificuldades e que daria graças a Deus por ter trabalho. Esse racismo vem do hábito, da representação política e simbólica de quem era o negro -- diz.

Para os pesquisadores ouvidos por Rumo, o racismo institucional é um dos maiores desafios para este século, já que enfraquece a legislação existente e pereniza o discurso de que o racismo é um vitimismo por parte do negro.

-- Não conheço quem tenha sido punido por racismo -- afirma o professor e integrante do Neabi da Unisinos Jorge Luiz Teixeira da Silva.

Representatividade pelo direito de existir

Há pequenos passos que são comemorados por negros e indígenas.

-- Tivemos avanços de inclusão e valorização dos afrodescendentes e dos indígenas, com leis de 2003 e 2008, que obrigam o estudo da história africana, afro-brasileira e indígena nas escola e universidades -- avalia Adevanir Pinheiro. O Neabi da Unisinos, coordenado por Adevanir, desenvolve projetos de educação etnicorracial para resgatar as culturas e a dignidade desses povos cuja história é, também, a história do Brasil.
Nos meios de comunicação, na educação, na política, na sociedade civil, representatividade e visibilidade importam. À medida que minorias conquistam espaços que historicamente lhes foram negados, passam a poder falar por si. Ver-se representado é pré-requisito para sentir-se parte.

-- O psicanalista Contardo Calligaris fala que a maior violência, hoje, é a impossibilidade do reconhecimento e do amor. As minorias não têm reconhecimento nas narrativas. Uma criança negra se depara com toda uma indústria de brinquedos que não consegue dar visibilidade à negritude. Que violência é esta que não me reconhece sequer enquanto possibilidade de existência? -- indaga a psicóloga Fernanda Hampe.

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